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A voz que trocou de roupa



Em abril de 2022, no final do post "Goiânia, além dos aparta-mentes", deixei alguns fragmentos de textos. Textos que escrevia enquanto "passeava" em consultórios médicos. Em um deles, a lembrança viva de meu pai me fez pensar em quantas histórias cabem numa xícara de café. Nasceu assim a crônica 

  A voz que trocou de roupa

Uma crônica sobre memórias, mudanças e o Brasil que (nem sempre) acolhe seus intelectuais

Foi num hotel em Goiânia que percebi, sem aviso, o tanto de história que me atravessa. Histórias que não conto, mas que se escondem nas entrelinhas do que sou - que aparecem quando o cheiro do café lembra a infância, ou quando um silêncio diz mais do que uma frase bem escrita.

O salão do café da manhã tinha luz amarelada, e um ventilador de teto girava com esforço, como se quisesse permanecer ali apenas por cortesia. Os donos do hotel vieram conversar conosco. Um casal  gentil e acolhedor. Disseram que haviam sido jornalistas. Trabalharam durante anos em redações, de dia e de noite, narrando um país sempre em sobressalto. Um dia, decidiram parar. Abriram um restaurante. Depois, outro. E, com o tempo, compraram aquele hotel - que cheirava a pão de queijo e saudade.

Enquanto falavam, a imagem do meu pai foi surgindo como fotografia revelada em laboratório: primeiro borrada, depois nítida. Ele também fora jornalista. Um homem de pensamento crítico, voz pausada e frases que deixavam rastro - dessas que a gente guarda e só entende de verdade muitos anos depois. Tinha uma sabedoria sem pressa. Um intelectual brasileiro daqueles que acreditaram, por um tempo, que a palavra podia transformar o mundo. Mas o mundo, por vezes, transforma a palavra em silêncio. 

Às vezes, a palavra precisa se esconder para que a vida aconteça

Como tantos, ele percebeu que a sobrevivência exigia uma escolha. E ele escolheu. Foi assim que ele prestou concurso público. Tornou-se funcionário administrativo. Guardou o ofício antigo como quem dobra uma camisa favorita e a deixa no fundo da gaveta: não por desamor, mas por necessidade. Ainda lia os jornais, ainda escrevia, mas com menos alarde. Sua voz trocou de roupa, sem nunca se calar.

Naquela manhã, enquanto mexia o café um tanto forte demais, a televisão exibia um telejornal de vozes exaltadas e urgências fabricadas. Ao redor, a vida real: uma senhora passava manteiga no pão com movimentos de quem repete um ritual antigo; uma criança empurrava uma cadeira com o barulho típico da infância. E os donos do hotel riam com os hóspedes, leves, como se tivessem enfim encontrado um ponto de repouso.

Talvez meu pai tivesse feito o mesmo. Talvez fosse ele quem me ofereceria o café, com aquela cara de quem já sabia que eu ia preferir sem açúcar. Ou talvez, como sempre, colocasse mesmo assim - insistente no afeto.

Nem toda despedida é barulhenta. Algumas moram no fundo da gaveta

O pão de queijo tinha o sabor das manhãs de casa. E o café, aquele gosto de coisa antiga que a gente não esquece. E a imagem dele, dobrando o jornal com precisão, agora parecia uma despedida suave. Um gesto de silêncio - desses que só se entende depois.

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