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quinta-feira, junho 19, 2025

A voz que trocou de roupa



Em abril de 2022, no final do post "Goiânia, além dos aparta-mentes", deixei alguns fragmentos de textos. Textos que escrevia enquanto "passeava" em consultórios médicos. Em um deles, a lembrança viva de meu pai me fez pensar em quantas histórias cabem numa xícara de café. Nasceu assim a crônica 

  A voz que trocou de roupa

Foi num hotel em Goiânia que percebi, sem aviso, o tanto de história que me atravessa. Histórias que não conto, mas que se escondem nas entrelinhas do que sou — que aparecem quando o cheiro do café lembra a infância, ou quando um silêncio diz mais do que uma frase bem escrita.

O salão do café da manhã tinha luz amarelada, e um ventilador de teto girava com esforço, como se quisesse permanecer ali apenas por cortesia. Os donos do hotel vieram conversar conosco. Um casal  gentil e acolhedor. Disseram que haviam sido jornalistas. Trabalharam durante anos em redações, de dia e de noite, narrando um país sempre em sobressalto. Um dia, decidiram parar. Abriram um restaurante. Depois, outro. E, com o tempo, compraram aquele hotel — que cheirava a pão de queijo e saudade.

Enquanto falavam, a imagem do meu pai foi surgindo como fotografia revelada em laboratório: primeiro borrada, depois nítida. Ele também fora jornalista. Um homem de pensamento crítico, voz pausada e frases que deixavam rastro — dessas que a gente guarda e só entende de verdade muitos anos depois. Tinha uma sabedoria sem pressa. Um intelectual brasileiro daqueles que acreditaram, por um tempo, que a palavra podia transformar o mundo. Mas o mundo, por vezes, transforma a palavra em silêncio. Como tantos, ele percebeu que a sobrevivência exigia uma escolha. E ele escolheu. Foi assim que ele prestou concurso público. Tornou-se funcionário administrativo. Guardou o ofício antigo como quem dobra uma camisa favorita e a deixa no fundo da gaveta: não por desamor, mas por necessidade. Ainda lia os jornais, ainda escrevia, mas com menos alarde. Sua voz trocou de roupa, sem nunca se calar.

Naquela manhã, enquanto mexia o café um tanto forte demais, a televisão exibia um telejornal de vozes exaltadas e urgências fabricadas. Ao redor, a vida real: uma senhora passava manteiga no pão com movimentos de quem repete um ritual antigo; uma criança empurrava uma cadeira com o barulho típico da infância. E os donos do hotel riam com os hóspedes, leves, como se tivessem enfim encontrado um ponto de repouso.

Talvez meu pai tivesse feito o mesmo. Talvez fosse ele quem me ofereceria o café, com aquela cara de quem já sabia que eu ia preferir sem açúcar. Ou talvez, como sempre, colocasse mesmo assim — insistente no afeto.

O pão de queijo tinha o sabor das manhãs de casa. E o café, aquele gosto de coisa antiga que a gente não esquece. E a imagem dele, dobrando o jornal com precisão, agora parecia uma despedida suave. Um gesto de silêncio — desses que só se entende depois.

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terça-feira, julho 29, 2008

Via Vida: A Bela e Doce Teresinha

Teresinha
Teresinha, sua filha Zenaide e um um pequeno piano. Realidade ou ficção? Pedaços de uma vida ou um miniconto?

Eu era bem pequena quando conheci Teresinha, mas não poderia me esquecer. Moça linda, de vinte e poucos anos, pele clara, cabelos escuros e muito meiga. Falava baixo e tinha os olhos doces. Lembro-me dela como se fosse hoje. Também, pudera! - "me elegera" como uma segunda filha. Durante o tempo que passou conosco esteve sempre próxima. Quando sua filha Zenaide dormia, depois do almoço, Terezinha me colocava em seu colo e me fazia também dormir, passando as mãos em meus cabelos.

Teresinha era minha irmã. Filha do primeiro casamento de meu pai. Ele, desnorteado com a morte de sua mulher, o amor de sua juventude, com quem teve dezoito filhos, praticamente abandonou tudo. Seus filhos mais novos ficaram aos cuidados dos irmãos mais velhos. Deu aos filhos já adultos condições financeiras para começarem suas vidas, comprando fazendas a uns, doando gado a outros... Emprestava o que tinha aos amigos, mesmo sabendo que não teria retorno. Ouvi muito a história do avô de um conhecido político goiano. Meu pai emprestou para ele, que tinha perdido tudo, "uma tropa de burros" para que recomeçasse sua vida em Anápolis (Goiás). Os 'burros' lhe deram sorte, enricou, porém nunca mais se lembrou do amigo que o socorreu em um momento difícil. Meu pai perdeu tudo financeiramente falando, mas ficou com os conhecimentos adquiridos nas muitas escolas que teve a oportunidade de frequentar, principalmente durante seu tempo de seminarista. Era jornalista, poliglota e muito culto. O saber que se adquire é assim, como um DNA; não sai, ninguém tira, fica conosco para sempre. Depois de anos e anos de viuvez, tropeços, uma grande tristeza e decepções, conheceu minha mãe, casando-se pela segunda vez. Ela foi seu porto seguro, seu norte, foi com ela que conseguiu voltar à vida. Providencialmente convidado para diretor da administração estadual da pequena cidade onde morava, no norte de Goiás, hoje Tocantins, seguiu seu novo caminho como funcionário público.

Voltando ao início: Conheci Teresinha quando ela foi passar um mês lá em casa, acompanhada de Zenaide que tinha apenas um aninho. Do alto de meus 4 ou 5 anos, amei saber que tinha uma irmã-moça. Uma irmã que me parecera saída das histórias de fadas que uma de minhas tias nos contava. Ela - Teresinha, depois da morte de sua mãe, foi morar com uma de suas irmãs já casada. Foi na casa desta irmã que conheceu um jovem. Pela foto dos dois, eram bem parecidos. Casaram-se e tiveram dois filhos. Ela foi ver e visitar nosso pai que não via há muitos anos. Deve ter ido se despedir dele. Quem sabe teve algum pressentimento... Devia saber que seria a última vez que o via. E que nos via - meus irmãos e eu, que ela acabara de conhecer.

Teresinha trouxe uma lembrança para cada um de seus novos irmãos. Meu presente foi uma linda boneca. Gostei tanto que não a largava nem mesmo quando íamos almoçar. Dormia abraçada com ela. Em retribuição, meu pai comprou para sua neta Zenaide um piano de brinquedo. Disse que era uma lembrança da "tia" que gostara tanto da boneca.

Alguns meses depois recebemos de Teresinha uma foto de Zenaide com o pequeno piano. Como meu pai ficou feliz com aquele gesto de carinho de sua filha! Mostrava para todos seus amigos, orgulhoso. Quanto a mim, amei aquela foto. Zenaide ao lado do presente que "eu" lhe havia dado.

Uma carta acompanhava a foto. Teresinha nos dizia que estava esperando um segundo filho. Depois, não soube mais nada dela. Meu pai, traumatizado com perdas - além da primeira esposa, já tinha perdido dois outros filhos - nos escondeu a notícia de sua morte. Talvez pensasse que éramos muito pequenos para compreender algo assim tão inexplicável. Era bem típico dele... Só soube da morte de Teresinha quando já tinha de nove para dez anos. Mas nunca a esqueci. Ela não resistiu ao dar à luz seu segundo filho. Este, por sua vez, faleceu ainda criança. De Zenaide soube pouco: que estava morando em outro estado, que seu pai casou-se uma segunda vez...

Zenaide, como sua mãe, perdeu o elo que une uma família. Perdeu aquela que a gerou e que poderia ligá-la aos outros familiares. É muito doído a perda de um pai. Porém muito mais sofrido é perder, ainda criança, uma mãe. Compreendo agora o porquê da primeira família de meu pai ficar tão dispersa, sem muito contato uns com os outros. A corrente fora partida.

Gostaria muito de rever Zenaide, saber como ela está, abraçá-la. Queria também lhe dizer que ela e sua mãe ficaram para sempre em minha memória, em minhas lembranças.


Foto de autoria desconhecida
Zenaide e seu pequeno piano

Teresinha. Depois de anos e anos sem ver seu pai, foi abraçá-lo para se despedir e deixar para sempre sua presença marcada em nossas memórias: de uma pessoa doce, generosa e que amava os seus. Como os aplausos para o artista intérprete dessa melodia, deixamos aqui registrada nossa saudade e admiração por esta querida irmã que tão rapidamente passou por nossas vidas.

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